Em outubro do ano passado eu tive a maravilhosa oportunidade de assistir ao espetáculo “Bernarda, Por Detrás das Paredes”, do Grupo Repertório Artes Cênicas e Cia. A adaptação do texto – que mistura “A Casa de Bernarda Alba”, de Frederico Garcia Lorca, com “Arte Poética” de Aristóteles – foi magistralmente feita pela dramaturga e diretora Nieve Matos. É um verdadeiro espetáculo aos olhos, que nnos dá prazer de dizer que no Espírito Santo temos trabalhos de excelente qualidade, mas eu preferi não opinar sobre a peça, por dois motivos: 1º – como vivo dizendo, não sou crítico de teatro, falo do que gosto e elogio se fico satisfeito; e 2º – Este espetáculo não merecia a opinião de um mero espectador, que mal recorda da sensação de estar em um palco de teatro e que somente pode dizer o quão maravilhado ficou com o trabalho, merecia a critica especializada, de pessoas que compreendem tanto a sensação de assistir, como de fazer teatro, então tomando a liberdade – dada pela diretora Nieve Matos, que intermediou com aqueles que opinaram sobre o espetáculo – disponibilizo aqui as críticas do professor e mestre em Literatura, músico e compositor Moisés Nascimento e do diretor, dramaturgo e ator Fernando Marques, do Grupo Z de Teatro, a quem em tenho enorme respeito. Então seguem abaixo, lembrando que a crítica do diretor Fernando Marques é uma resposta ao do professor Moisés Nascimento:
Pelas paredes da casa: crítica à peça “Bernarda, por detrás das paredes”, do grupo Repertório Artes Cênicas e Cia
10/março/2011 – por Moisés Nascimento
A peça teatral Bernarda, por detrás das paredes, do grupo Repertório Artes Cênicas e Cia, foi um dos grandes espetáculos teatrais produzidos em solo capixaba em 2010. Uma adaptação da obra A casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, e da Poética, de Aristóteles, a encenação leva o espectador não só a perceber o perfeito domínio do texto que possuem os atores Nicolas Corres Lopes e Roberta Portela, como também a refletir sobre o fazer teatral, em que a metalinguagem, tão cara à Lorca, se faz presente a todo o instante.
Ao chegar ao portão 152 da Rua Professor Baltazar, no centro de Vitória-ES, e adentrar ao pequeno pátio da casa, o espectador de primeira viagem, sem se dar conta, já é plateia. Isto porque a encenação do espetáculo começa ali, com os atores promovendo uma “algazarra” nas janelas e paredes do segundo e primeiro piso – o que gera um pequeno pavor nas quase 50 pessoas ali presentes (o número é limitado em função do espaço e da proposta da peça) –, embalados por uma trilha sonora com fortes influências do flamenco espanhol. E quem leu o texto de Lorca, percebe nesta pequena “introdução” uma expansão do texto original, que talvez necessitasse de um pouco mais de cenário, caso a ideia fosse encenar a peça do dramaturgo. No entanto, é nisso que o grupo Repertório se sobressai e mostra que Bernarda é um espetáculo contemporâneo, pois a adaptação do texto para a casa, principalmente em tentar limitar o texto àquele espaço físico, é genial.
Percebe-se o dedo preciso e minucioso da diretora do grupo, Nieve Matos, que demonstra habilidade tanto na adaptação textual quanto em dispor o espetáculo na ambiência da casa. Acostumado a ver só lamento nesta cidade por parte daqueles que fazem teatro, ora pela falta de espaço, ora pela de público, encantou-me ver a capacidade da diretora de levar o teatro para espaços em que ele nunca deixou de existir – na rua, no caso do espetáculo anterior (Peroás e Caramurus) e nas casas. Não é novidade a utilização da casa – já que em outros lugares, sobretudo aqui no Espírito Santo, já se fez isso; mas o sabor consiste em fazer isto com a obra de Lorca, grande dramaturgo por excelência, que, portanto, exige sensibilidade e maturidade estética. E isso pode ser notado na forma como as personagens do texto original se desdobram nos dois atores do espetáculo (Nicolas e Roberta) – que se dividem ora em Bernarda, ora em Maria Josefa, Angústias, Madalena, Amélia, Martírio, Adela, La Poncia, criada, Prudência etc., etc., etc.
Nieve Matos, em comparação a outros dramaturgos contemporâneos capixabas, sobressai. Talvez por saber dosar a teoria – algo em parte raro para alguns escritores daqui – e a prática teatral em uma sintonia que beira à perfeição, se não fosse o excesso de metalinguagem que recheia o espetáculo e parece sobrar. Cito um exemplo: várias vezes os atores se apresentam enquanto Nicolas e Roberta durante o espetáculo; destituídos ou não dos personagens, isso traz sabor ao espetáculo; porém, às vezes sobeja como no trecho em que o personagem de Nicolas afirma que “a próxima cena será encenada a pedido da atriz Roberta Portela”. Esse é um pequeno exemplo que se pode dar em que se nota a sobra da metalinguagem no espetáculo, já que não há necessidade dela ser marcada a todo o instante.
No entanto, isso é apenas pequenos detalhes que em nada prejudicaram o impacto estético que a peça proporcionou ao público presente, com certeza marcado pelo desconforto, seja rindo ou espantado; porém, nunca doce demais, ao ponto de deixá-los curiosos a respeito de quais os próximos rumos do grupo Repertório.
É isso.
Moisés N.
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11 de março de 2011
Olá, Moisés.
Escrevo pra dizer, em primeiro lugar, que fico muito feliz por perceber que há gente disposta a escrever sobre o teatro feito no Estado – precisamos disso. E para dizer, ainda, que concordo com o que você diz: o espetáculo é um dos grandes entre os que temos feito por aqui. Adoro o texto do Lorca – na verdade, gosto muito dele, de maneira geral – e adorei a montagem. A experiência do espetáculo, pra mim, como espectador, foi muito, muito boa. E, como alguém de teatro – e que faz teatro aqui, no ES -, muito gratificante.
De um ponto de vista muitíssimo pessoal, devo dizer que ver a Poética aristotélica ali, posta em cena, foi muito legal – vinha de um ou dois semestres dando aula sobre o assunto e, ver os fundamentos do teatro dramático tratados daquele jeito, eu que vinha tratando o tema de uma forma dura, quadradinha (mea culpa) – foi uma delícia.
E aí entra o seguinte: uma montagem de Bernarda que leva pra cena a Poética faz com que Aristóteles pontue Lorca ou com que Lorca ilustre Aristóteles? Parece-me que faz com que as duas coisas aconteçam. E mais que isso: Aristóteles e Lorca passam a falar – ou a ser instrumentos para que se fale – do Repertório, de um processo de criação específico. Tudo bem, em alguma medida, todo trabalho artístico fala de si e de como foi engendrado. E isso é algo que, em muitos casos tem sido levado às últimas consequências pelo teatro contemporâneo. Às vezes, isso rende umas coisas bem chatinhas. Ás vezes, como no caso de Bernarda, por detrás das paredes, rende coisas muito interessantes.
Eu tenho um palpite sobre o que faz a diferença. Bernarda – o espetáculo – fala de si mesmo, mas, falando de si, fala de mais que isso. Não perde a mão e não ignora a densidade do que Lorca nos dá, não deixa a história de lado, não perde de vista o que o texto tem – e muito – de poético e de patético – e, é claro, patético, aqui, refere-se a pathos e seus demais derivados. E, por outro lado, não pesa a mão, não se esquece de algo que já estava em Brecht – de que o teatro não pode ser uma escolinha – e, com isso, não nos faz sentir em uma sala de aula pra estudar a teoria aristotélica. Aliás, se prestarmos atenção, não é só de Aristóteles que se fala. Quando o espectador é advertido quanto ao procedimento de os atores dobrarem personagens não ser algo novo e de quando se começou a fazer isso no Brasil, quando se fala de que aquela cena está ali por insistência da atriz, entre outras coisas, quando se faz isso, parece que o grupo está dizendo: olha, eu estou te contando a história de Bernarda, sua criada e suas filhas, eu estou te falando de Aristóteles, mas eu estou falando também de mim, e de como eu faço isto que você está vendo, e de como isto que eu estou fazendo vem sendo feito antes de mim. É como se me dissessem: Olá, eu sou Nicolas, ou Roberta, ou Nieve, ou Pôncia, ou Bernarda, ou as filhas, ou os rapazes que tentaram, ou que foram tentados, ou Lorca, ou Aristóteles, ou o Repertório, ou tantas outras, ou tantos outros, e você, quem é? E isso quer dizer que eles, ao falarem de si, não falam para si, mas falam comigo também – e não apenas porque sou eu também alguém de teatro, mas porque sou alguém que foi até ali ver, e vivo no mesmo mundo em que vivem eles, e que não perco a consciência de que estou numa casa no Centro de Vitória, mas não deixo, por isso, de entrar na rede do Lorca ou do Aristóteles, mas, sobretudo, na rede que o Repertório me convida a tecer, a partir de novelos de Lorca e Aristóteles e outros mais, mão a mão, juntos, ali, naquela hora.
Por isso é que não me parece sobrar, em Bernarda, por trás das paredes, a metalinguagem. E este é o nosso único ponto de discordância quanto ao espetáculo.
No mais, fica reiterado o meu agradecimento por você escrever sobre o teatro que fazemos por aqui. Não por nenhuma veleidade – mas pela oportunidade do debate. E, com isso, espero que tenha ficado clara minha intenção de trocar, de crescer, de falar e ouvir – e não de retrucar, pura e simplesmente. Quem sabe o Portal Yah e a Rede Cultura Jovem não pensam na possibilidade de um ou outro bate-papo? Seria bem proveitoso, eu acho.
Abraço.
Fernando Marques
Ambas as críticas podem ser encontradas no Portal Yah!, em Fragmentos na Ribalta: http://portalyah.com/fragmentosnaribalta/
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