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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Linguagem Inominável: Um Estudo sobre a Mistura das Linguagens Teatral e Televisiva em Obras Audiovisuais, por Charlaine Rodrigues

chai[9] Em setembro de 2010, a atriz Charlaine Rodrigues, que agora está fazendo pós-graduação de Comunicação Televisiva na FAESA, me passou um artigo que ela apresentou no GP Televisão e Vídeo, X Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, que aconteceu em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, entre os dias 02 e 06 de setembro de 2010. Conheço pouco do evento, mas o material que apresentarei a vocês e que faz parte dos estudos da atriz são muito interessantes. Chai – como gosto de chamá-la (e como todos a chamam, no seu circulo de amizades) é também a responsável  pelo documentário “Atores”, que foi divulgado no blog Teatro Capixaba no dia 29/07/2010, então isso só demonstra sua enorme as artes cênico-teatrais, isso pode ser visto fora ou em palco, já que Chai é membro integrante do Clã de Teatro, grupo que realizou espetáculos como “A Grande Estiagem”, “O Pássaro Azul” e “Rascunhos”, sendo que ela participou desses dois últimos.

Então abaixo segue o material, desejo a todos boa leitura!

hp_toponew2 Linguagem Inominável:
Um Estudo sobre a Mistura das Linguagens Teatral e Televisiva em Obras
Audiovisuais.

Charlaine Suelen Rodrigues SOUZA
Alessandra CARVALHO
Faculdades Associadas do Espírito Santo - FAESA, Vitória, ES.

RESUMO

O presente artigo analisa a integração das linguagens teatral e televisiva em programas de televisão. O objetivo é mostrar como estas conseguem dialogar entre si para criação de produtos híbridos, cheios de riquezas em relação ao desenvolvimento de novas linguagens na televisão que, até agora, tornam-se difíceis definir por um nome. Propõese reafirmar o papel da pós–modernidade em quebrar as fronteiras entres as mídias e as
artes.

PALAVRAS-CHAVE: linguagem; teatro, televisão; fusões.

INTRODUÇÃO

No universo do audiovisual a palavra linguagem está relacionada à forma, ao como uma mensagem é transmitida. A união dessas características determina de qual linguagem pertence certa obra. Existe a jornalística, dramática, televisiva e etc. Mas quando um produto audiovisual possui características e referências diversas, torna-se difícil definir, uma única forma, restando à dúvida: Qual a linguagem daquele trabalho?
Esses sistemas de signos e referências e a mistura deles estão presentes desde o surgimento dos seres humanos. Durante a história da humanidade, o homem busca se expressar utilizando os recursos que estão disponíveis à sua volta. Produzindo signos todo o tempo.
Dentre as várias formas de expor e registrar a sua época, os humanos travaram vários diálogos com o mundo das coisas e dos seres. Mas como os signos perduram?

Por meio do humano. O que desenvolveu o teatro há mais de 3000 anos é tão humano quanto o que criou a televisão. Pensando em aspectos culturais, sociais e uma série de valores eles são diferentes. Mas, sua busca por auto compreensão e do mundo não se diferenciam porque os sentimentos em si não mudam. É com esta compreensão que podemos enxergar uma ligação entre as pessoas que carregam em si uma legião de
personagens, sensações e referências. Por isso, trabalhos artísticos podem ser admirados e reproduzidos independentes, fora de seu meio de origem.

O que mudou no correr dos séculos foi a forma como criar uma mensagem e o meio como transmitir a mesma, ou melhor, novas formas de transmissão de informações foram criadas. No século IV a.C. o teatro grego era a principal via de educação e integração dos homens. No Theatron (lugar onde se vê), homens se sentavam e assistiam juntos, ao vivo, as peças. Todos num ritual único. A televisão tem o poder de unir, virtualmente, milhões de pessoas nesse ritual de assistir uma peça, que hoje variou para show, novela, programa de auditório e etc. Para falar a esse homem é preciso uma linguagem que este possa entender e gostar. Dentre as inúmeras experiências e formatações de programas, a TV utilizou também o teatro, adaptado para este veículo. Os meios mudaram, mas o ser humano que senta na arquibancada do Theatron e o que
senta no sofá da sala de casa é o mesmo.

A arte usa diversos caminhos para tentar traduzir os conflitos e comportamentos de sua época. A televisão também suga todas as informações possíveis para moldar a sua programação, buscando maior aproximação com o público para ter audiência. Este trabalho busca identificar como este veículo de comunicação utiliza a arte teatral para produzir obras televisivas, criando linguagens plurais ainda sem definição. A expectativa é refletir sobre a enorme capacidade que a TV, em especial a Rede Globo, tem de se adaptar aos tempos e aos elementos das artes baseados em duas obras: a minissérie Hoje é dia de Maria – primeira jornada exibida na Rede Globo em janeiro de 2005 e a Sitcom Sai de Baixo, também da Rede Globo, que permaneceu no ar de 1996 a 2002. As duas obras são contemporâneas e sugerem bem o pensamento da pós – modernidade: grandes misturas de referências, buscando novas roupagens que originam produtos híbridos. É certo que ambas sendo exibidas na TV sejam consideradas obras audiovisuais, mas explicar a linguagem estabelecida pelas duas não pode ser definida em uma ou poucas palavras. Afinal, a própria definição de linguagem possui vários significados.

Foi realizado um estudo de caso de um episódio de cada uma das duas obras apresentadas onde constam fusões e conflitos das duas linguagens. A organização dessa análise se deu por meio de observação estruturada.

As reflexões sobre a atual sociedade que vivemos (economia, tecnologia e subjetividade) são importantes para falarmos das obras analisadas. Elas são frutos dela.

LINGUAGEM TEATRAL

Durante seus 3000 anos de história documentada o teatro possui um conceito básico: “alguém que representa para alguém que vê” (FERNANDO PEIXOTO, 1988). A maneira como estabelecer essa relação é que varia. O teatro contemporâneo é descrito por BERTHOLD (2001) como campo de pesquisa e acúmulo de todas as referências do mundo, se afirmando e se contradizendo sempre para que, assim, ganhe mais coragem e força.

As discussões sobre a linguagem teatral geralmente limitam – se à análise da dramaturgia. Pouco se discute sobre as montagens realizadas. O principal desafio para a pesquisa está na sua principal característica de ser efêmero. A peça Romeu e Julieta montada no período Elizabetano é diferente da montagem realizada em 2004 no Espírito Santo. Mas as comparações e análises desses materiais são quase impossíveis de serem feitas devido a impossibilidade de resgatar a montagem do século XVI e a de 2004. ROUBINE (1998) aceita e relaciona o teatro como dependente do tempo e, para auxiliar a pesquisa teatral, defende a observação constante quando afirma,

Numa arte a tal ponto tributária do tempo que nenhuma de suas obras pode ser nem preservada nem sequer ressuscitada, é afinal de contas normal, e até mesmo desejável, que as formas mais eficazes sejam de novo investigadas por cada geração. (ROUBINE, 1998, p.16)

A produção de signos é mais intensa e variada. Ela não é uma obra fechada. KOWZAN (2003) expõe um motivo pelo qual a pesquisa teatral não é aprofundada na linguagem,

Praticamente, não há sistema de significação, não existe signo que não possa ser utilizado no espetáculo. A riqueza semiológica da arte do espetáculo explica, ao mesmo tempo, por que este domínio foi, de preferência, evitado pelos teóricos do signo. É por que riqueza e variedade querem dizer, neste caso, complexidade. (KOWZAN, 2003, p. 98)

O teatro só se torna obra de arte cênica quando é encenado exibindo a fusão de todos os seus signos em conjunto modificando, ou não, o texto, que neste momento é apenas uma base para um trabalho, ele é mais um signo fazendo parte do jogo. Torna-se uma pesquisa um tanto frágil, mas, ao mesmo tempo viva. BUYSSENS apud KOWZAN (2003) diz que “em suma, é todo um mundo que se reúne e comunica durante algumas horas”.

ESSLIN (1961) afirmou que o teatro serve muitas vezes como campo de testes dos meios de comunicação de massa,

Pois, o teatro, apesar de seu aparente eclipse em virtude dos meios de comunicação de massa, permanece imensa e crescentemente significativo – particularmente por causa da disseminação do cinema e da televisão. Esses meios de comunicação de massa são por demais poderosos e custosos para poder permitir-se muita inovação ou experimentação; e assim, por mais limitados que sejam o teatro e seu público, é no palco vivo que os atores e autores dos meios de massa são treinados e adquirem experiência, e é ali que o material dos meios de massa é testado. O teatro de vanguarda de hoje é, provavelmente, a principal influência do entretenimento de massa de amanhã. ( p.11)

KOWZAN (2003) definiu no livro Semiologia do Teatro (2003), os signos em 13 elementos e depois os agrupou em cinco categorias: o texto pronunciado que abrange a sintaxe e emoção impressa pelo intérprete; a expressão corporal que envolve a mímica, o gesto e o movimento afinal, tudo que se diz (e o que não se diz) vem acompanhado de uma expressão ou gesto como afirma ROUBINE (2002) “É próprio de o ator ser ao mesmo tempo um e múltiplo”. O movimento cênico engloba as movimentações dos atores, indica as relações entre os personagens e suas características individuais, entradas e saídas de cena. Maquilagem, penteado e vestuário são os elementos externos do ator e, ao mesmo tempo, implícito nele de forma concreta e duradoura (o tempo da peça). O acessório é por vezes utilizado pelo ator, por outras pode compor o ambiente sendo associado ao cenário. É utilizado pelo personagem sem fazer parte dele, mas ao mesmo tempo, também age como signo. O cenário é o que contextualiza uma cena, que dá as direções de onde se passa a ação. Uma vez que é impossível reproduzir fielmente os locais onde ocorrem as ações, o que se vê no palco é uma sugestão do que seriam os lugares. Geralmente segue a linguagem estabelecida para toda a peça. A iluminação não está restrita a iluminar, torna-se um signo quando passa a fazer parte da história. Ela pode ser usada para delimitar uma ação, destacar o foco da cena e ambientar o local. Ela também sugere características psicológicas, climas, ritmos para as cenas e os sentimentos dos personagens. A música conduz o clima ou contradiz com ele de propósito, sublinha ações ou momentos para uma peça. Pode substituir signos e identificar os personagens.

Essas definições não sofrem muitas diferenças em relação a outras áreas como o cinema e televisão. O que muda é a aplicabilidade de acordo com o contexto de cada obra e as características de cada suporte.

LINGUAGEM TELEVISIVA

O conhecimento que originou a televisão foi inspirado pelo o que já tinha, em parte, conseguido o cinema com mais de 60 anos a frente de desenvolvimento da linguagem audiovisual: captação dos movimentos e sons do planeta. Que está ligado à fotografia, pintura e ao teatro. Para conquistar a audiência, a TV, principalmente a brasileira, utilizou o que os profissionais das artes no país dominavam mais: o rádio e o teatro, como afirma FILHO (2001)

(...) dessa história, podemos tirar a conclusão de que fazer televisão, desde o início, foi sempre criar novidades, buscando obsessivamente ir ao encontro do gosto, do momento, das expectativas do público. (...) A nossa foi assim desde o início. (FILHO, 2001, pg. 33)

Talvez tenha sido a televisão que desenvolveu como nenhuma arte já tenha desenvolvido artifícios dentro de sua linguagem, principalmente na ficção, para tornar mais eficaz à propagação de seu conteúdo, e por isso ela é uma forte fonte de pesquisa para transmissão e formatação de discursos.

SINGER (2001) fala do caos das cidades e das formas de divertimento para os cidadãos. Tudo é frenético para acompanhar e estimular ainda mais esse ser humano que precisa de choques o tempo todo. Soma – se a isso as novas tecnologias de suporte e acesso como os computadores e a internet que trazem uma enxurrada de informações e referências para esta nova sociedade, com a qual a TV retrata e busca mais interação já
que agora, existem mais fontes de competição para ela.

Quando se debate televisão, as discussões giram em torno do conteúdo transmitido e da maneira como eles podem atingir as pessoas. Mas, pouco se discute sobre a linguagem estética e sonora estabelecida na TV de forma geral ou específica de um programa. Negligencia-se a imagem para a análise do discurso, sem perceber que a linguagem audiovisual também faz parte do discurso. MACHADO (1988) visualiza alguns fatos que podem justificar esse fato

(...) O problema é que, no desenvolvimento histórico da televisão, os investimentos de capital e os avanços tecnológicos voltaram-se quase
exclusivamente para o aperfeiçoamento das condições de distribuição, enquanto as questões referentes à definição de uma linguagem e de uma temática mais próprias ao meio ficaram relegadas a segundo plano. (MACHADO, 1988. pg. 08)

Estudos sobre a concepção estética de um trabalho, a trilha sonora, a decupagem das imagens e seqüências de cenas ficam restritas ao conhecimento que existe acerca do cinema e pouco se estuda o que estes signos representam na televisão cuja base é o vídeo, que por sua vez ainda enfrenta dificuldades de estabelecer sua linguagem específica como afirma DUBOIS (2004), “o vídeo é bem o lugar de todas as flutuações, e não devemos estranhar que ele apresente, no final das contas, incomensuráveis problemas de identidade”.

Dentre todas as relações que a TV estabeleceu com outros meios, a vantagem do vídeo é a sua possibilidade do “ao vivo”. Com isso, ele se aproxima do teatro em relação à instantaneidade. A vantagem é poder oscilar entre o ao vivo e o gravado (várias vezes) o que estimulou as experimentações com este aparelho. Da mobilidade do vídeo, surgiram outros gêneros no universo audiovisual como o vídeo arte, o vídeo experimental e o vídeo clipe. Talvez os únicos que surgiram a partir do conceito “vídeo” e, mais tarde, influenciaram as artes e outros meios de comunicação como afirma DUBOIS (2004)

Os únicos terrenos que foi verdadeiramente explorado em si mesmo, em suas formas e modalidades explícitas, foram os dos artistas (a videoarte) e o da intimidade singular (o vídeo familiar e o vídeo privado, o do documentário autobiográfico etc). (DUBOIS, 2004. pg.69)

O vídeo tem limitações de um lado e possui diversos recursos para trabalhar as imagens de outro. Diferente da linguagem cinematográfica, ele deixa mais claro os efeitos que utiliza. Desvela – los faz parte de sua linguagem. No vídeo há a possibilidade grandiosa do efêmero. MACHADO (1988) leva essa questão ao extremo ao relacionar o discurso da realidade à maneira como o material é transmitido,

(...) Reduzida a pontos de luz varridos continuamente por feixes de elétrons e exposta como tal à decifração do espectador, a figura humana, os dramas humanos, a “condição humana” e todos os grandes temas definidores do humanismo burguês, tão caro à literatura e ao cinema, encontram – se irreversivelmente comprometidos. (MACHADO, 1988, p.132)

Com isso, o vídeo perde em definição de formas e cores tornando-se difícil sustentar planos gerais por muito tempo, já que, nesses planos, a quantidade de informações é maior. Com isso, a decupagem na televisão é baseada em 1º plano, plano detalhe e plano médio e a edição das imagens é mais rápida, adotando indiretamente a figura de linguagem “metonímia” (um detalhe representa o todo), restringindo os planos gerais apenas para localização da ação ou para cenas de multidões (MACHADO, 1988). O autor analisa o vídeo como a primeira mídia a trabalhar com o movimento de câmera, uma vez que o cinema trabalha com planos fixos.

Todo conteúdo pode caber na TV. Ela reserva espaço para quase todos os gostos em sua programação por meio da segmentação. Existem horários e formatos para um determinado tipo de público, tática necessária para a organização e competição no mercado. REBOUÇAS (1999) afirma que as emissoras reinventam suas programações para manter-se à frente das concorrentes e possui signos para a comunicação dentro do seu universo.

Na distribuição dos signos de acordo com KOWZAN, na linguagem da televisão os significados deles sofrem poucas diferenças. Esta está concentrada na forma que é executada.

A câmera capta mais expressões e afins produzidos pelos atores, a interpretação para TV e cinema tornou-se mais subjetiva. Não são necessários exageros já que a câmera vai até o ator e age como um mediador na relação da obra com o público. Com o microfone uma pessoa pode falar no seu ritmo e volume normais. ROUBINE (2002) explica que quanto mais próximo da expressão popular, maior é a possibilidade de identificação e aproximação do público com o personagem.

(...) os artifícios inerentes a uma boa dicção cênica se tornam, na tela e no rádio, fatores que levam a uma quase caricatura. A técnica vocal própria dessas mídias, acrescida da ideologia do “natural” que prevalece fortemente nesse setor de atividade, obriga o ator a adotar uma dicção intimista (...). (ROUBINE, 2002, p. 20)

O ritmo e a extensão das falas estão submetidos à câmera, ao tempo da TV. BENJAMIM (1994) afirma que no cinema (ou seja, para a câmera) é menos importante representar outro personagem que ele representar a si mesmo. BONASIO (2002) mostra que, devido ao fato do objeto de captação de imagens ser móvel, não quer dizer que os atores possuem vantagens para interpretação para o vídeo.

A televisão ao mesmo que domina a linguagem audiovisual parece se perder, mesmo que seja em consenso com consciência. Utilizando todas as características do meio ela explora e absorve os elementos do audiovisual e de outras áreas. É nessa linha limite que obras conseguem, por meio da TV, se expressar nos formatos da linguagem televisiva e dialogar com diversas artes e suas linguagens.

FUSÕES: A LINGUAGEM INOMINÁVEL DA MODERNIDADE

Escritas para a televisão ou não, ambas as obras foram adaptadas para linguagem televisiva. Exibidas no século XXI, as obras expressam a mistura de linguagens em seus formatos: Sai de baixo possui a estrutura parecida com a de um teatro gravado. As referências da linguagem teatral são claras, principalmente pela existência da platéia, mas ela vai além e explora ao máximo as possibilidades dos dois formatos. Em Hoje é Dia de Maria as referências são indiretas e demonstra uma fusão mais completa entre as duas linguagens.

SAI DE BAIXO

Todas as definições cabem no Sai de Baixo (sitcom, teleteatro, humorístico), afinal quase tudo cabe no programa. O episódio escolhido chama-se Separação de bens, de 1996.

Sai de Baixo possui a liberdade de utilizar, hora mais recursos do vídeo, hora recursos do teatro obedecendo à conveniência do momento. Embora exista a idéia base e estrutura, não há amarras quanto à utilização das linguagens, elas estão a serviço dos atores, diretores e técnicos. BERTHOLD (2001) explica que o teatro filmado é um produto híbrido, que está no meio do caminho entre o teatro e o cinema.

Na ficção seriada da TV, atores devem viver a cena esquecendo a câmera para a interpretação. Mas o programa em questão vinha para desafiar convenções. Ele quebra a narrativa no momento em que os atores entram em cena e esperam calmamente as palmas do público, numa mistura de ator/personagem. A postura de esperar o público enxergar quem existe mais uma pessoa no palco é característica do teatro para que o público consiga acompanhar melhor a história.

Em Sai de Baixo eles assumiam que o que estava acontecendo ali era uma representação quebrando a narrativa e a idéia da “Quarta Parede”. Este conceito pode ser associado ao pensamento de Bertold Brecht sobre o distanciamento do ator. BRECHT apud MAGALDI (1997) defendia que o ator não poderia “ser” o personagem, mas representá-lo. O público precisa ter a sensação de que o que está acontecendo não é a vida real para que pudesse ter um pensamento crítico sobre o que era apresentado. Desde o início do programa, ele já entrega o teatro com o grande plano geral e o abrir das cortinas.

O maior momento de quebra da narrativa se dá quando em meio a uma discussão entre Ribamar (Tom Cavalcante) e Caco (Miguel Falabella). Fababella se dirige para o público e fala que em todos os episódios um ator é escolhido para fazer a piada especial da noite e que era a vez dele. Ele se dirige para Tom Cavalcante e pede a “deixa” 5 novamente, ele repete a última frase de seu texto e Caco fecha a piada. Ela não tem graça nenhuma, mas nesse momento todos os atores que estavam nas coxias6 entram no palco rindo descontroladamente e cumprimentando Miguel pela excelente piada. É um momento surreal, inesperado que quebra o jogo totalmente, mas dá mais força a proposta do programa.

Nesse mundo o público serve de termômetro para os atores. A platéia diz na hora se o que está acontecendo é bom ou não e essa reação impulsiona e inspira os atores ao ponto deles valorizarem alguma piada de acordo com a reação no teatro. Marisa Orth (2003) disse, no documentário em anexo ao DVD da sitcom, que a participação do público foi fundamental e que com ele é possível “ouvir o barulho do gol”, numa alusão aos acertos cometidos durante a apresentação. BERTHOLD (2001) defende o público como característica primordial que diferencia o teatro,

Há apenas um elemento que o cinema e a televisão não podem roubar do teatro – a intimidade do organismo vivo. Por causa disso, cada desafio para o ator, cada um dos seus atos mágicos (que a platéia é incapaz de reproduzir) torna-se alguma coisa de grande, de extraordinário, alguma coisa fora do êxtase. (BERTHOLT, 2001, pg.526)

Os atores precisam trabalhar com dois campos de interpretação: aquela que pretende atingir as pessoas que estão no teatro e aquela que vai buscar as pessoas que estão assistindo a televisão. Os gestos e a postura corporal obedecem as duas linguagens, são naturalistas e bem marcados.

Embora todos usassem microfones a forma de falar estava ligada basicamente à técnica teatral da voz projetada7 porque precisa chegar a todas as cadeiras do teatro. No vídeo, ela dá a impressão de uma voz “gritada”, mas ainda assim ela é aceita pelo contexto da peça, que é uma comédia em um lugar que percebe – se ser um teatro, mas que em um drama tradicional na linguagem televisiva soaria extremamente incômodo. Como toda ação se passa em um único cenário, as ações precisam se resolver na sala do apartamento do Largo do Aroche. Portanto algumas cenas são marcadas para acontecer paralelamente no mesmo espaço, mas independentes uma da outra. Por exemplo: Edileuza está na porta do banheiro atrás de Caco quando ele reserva as passagens aéreas para a amante. Numa representação televisa “normal” ela seria ouvida por ele. Mas, por ser um momento simples se estabelece um acordo entre os atores: Miguel finge que não ouviu nem viu Edileusa para ela mostrar para o público que sabe da armação de Antibes.

Das oito câmeras existentes no teatro, três podiam captar os planos gerais frontais, as outras captavam os detalhes. Todas prontas para se mover a qualquer hora dependendo da movimentação dos atores. A câmera de Sai de Baixo era instável. Para facilitar o trabalho, os planos variavam entre primeiros planos um pouco mais abertos, planos médios, conjuntos e plano geral. No reino do primeiro plano, que é o vídeo, ele foi pouco utilizado para atender as necessidades do teatro e da liberdade de movimentação dos atores.

Na encenação os atores utilizam um recurso muito forte no teatro para focar a ação: o proscênio8. Geralmente, as ações se passam dentro da caixa preta, quando um personagem vai para o proscênio ele pode se referir ao público, partir para um momento de reflexão e isolamento do resto do ambiente.

Ser naturalista o tempo todo não é característico de Sai de Baixo. Quando a família decide declarar guerra entre si um ambiente de combate é montado no palco, no meio do apartamento: arame farpado, roupas camufladas, barricada de madeira, iluminação específica e efeitos sonoros compõem a cena. Quando Vavá e Cassandra resolvem ir dormir os casais Caco/Magda se posicionam do lado esquerdo do palco e Edileuza/Ribamar ficam na ponta direita para namorar. A montagem é paralela e a luz estabelece o foco das ações com um pino em cada casal de uma vez. Edileuza e Ribamar sugerem estrelas no céu coberto pelo teto e ainda ressalta que o teto está todo sujo.

O que importa é que ali é um espaço de imaginação e sugestão. O programa parece brincar o tempo todo com as vantagens e desvantagens que o teatro tem dentro da televisão e da televisão dentro do teatro.

HOJE É DIA DE MARIA

A segunda obra foi concebida, executada e transmitida em um contexto totalmente diferente que Sai de Baixo. A forma apresenta fusões do teatro, da animação, do circo e do cinema. Uma das características de Hoje é dia de Maria está na possibilidade de abrigar várias referências. O teatro perpassa toda a obra. Está em constante diálogo com a televisão.

Para mostrar esse trabalho, vários profissionais, incluindo grupos de teatro, de bonecos, folclore e danças regionais foram convidados para participar. Numa mistura de pessoas que conheciam muito e pouco da televisão.

A minissérie foi exibida em janeiro de 2005, após as 22h. Sua diferença está na liberdade de experimentar estéticas diferentes do que estamos acostumados a ver na TV. BALOGH (2002) defende as minisséries com campos de experiências para as obras audiovisuais

Sob a ótica da recepção, elas estão bem menos sujeitas à tirania dos índices de audiência do que os demais formatos em série e novelas. (...) (BALOGH, 2002, p.123)

O grande encanto da minissérie foi a estética utilizada para contar a história de Maria. A saga da menina foi adaptada das obras de Carlos Soffredini, dramaturgo teatral cuja principal referência de seu trabalho é a pesquisa das culturas regionais do Brasil e contos de fadas.

O episódio escolhido é o último da minissérie. Maria acaba de se tornar criança novamente e começa a fazer o caminho de volta para casa, nesse percurso ela encontra praticamente todas as pessoas que havia conhecido quando partiu em viagem. Para BRANDÃO (1985) “a Tragédia é, não raro, a passagem da boa à má fortuna”. Esse gênero, consagrado nos textos do teatro grego, se encaixa de várias formas na história de Maria, uma vez que o destino agiu mudando a sorte da menina, que vivia feliz com a família e, por conta da morte da mãe, tudo desandou em sua vida.
Agora ela precisa sair numa jornada e passar por provações para crescer, onde tudo o que lhe acontecer será resultado de suas atitudes. Embora o final de jornada seja feliz, o autor explica que a tragédia não está sempre no fechamento da história,

É que o trágico pode não estar no fecho, mas o corpo da tragédia. Chamamos, por isso mesmo, tragédia a peça cujo conteúdo é trágico e não necessariamente o fecho. (BRANDÃO, 1985. p. 14)

O universo de Maria foi totalmente construído dentro de uma estrutura especial chamada Domo. CARVALHO (2006), diretor da minissérie, conta no documentário em anexo ao DVD, que não queria a realidade em si para compor a história, uma representação emocional de uma realidade. Assim como no teatro, todas as referências foram representadas e adaptadas ao local onde está sendo encenada a peça. Se tivéssemos que relacionar o local com algum palco, a história se passa em uma arena ou teatro de rua. O público fica em volta assistindo de fora, o que nos aproxima é a câmera que parece inserida no meio dos personagens durante as cenas.

A construção do cenário e figurinos foi feita à base da sugestão e não da realidade e tudo dependerá do quanto o ator se compromete com o jogo sugerido. Dificilmente seria possível ter animais de verdade em cena. Os bonecos e marionetes de cavalos, burros, pássaros e patos são encarados com tamanha fé e teatralidade pelo elenco que não faz a menor diferença se eles são bonecos ou não. CARVALHO (2006) fala que não mente para o público: “isto é um céu verdadeiro”, “Aquela casa não é pintada”. A caminho das franjas do mar, Maria se direciona pelo riachinho. Ela passa pelo riacho várias vezes. O rio é a principal referência da utilização do teatro nesse universo, ele é modificado com arbustos, planos e iluminação, mas continua o mesmo espaço, mas com o local da ação diferenciado.

Na volta para a infância, ela está sem a chavinha que ganhou da mãe e começa a procurá-la. Enquanto isso, Asmodeu (o diabo que a persegue durante toda a jornada) permanece observando-a. Nesse momento se estabelece uma montagem paralela em que os personagens estão praticamente no mesmo espaço, mas precisam fingir que não estão se vendo para contar a história. Quando ela recupera a chavinha e briga com o Demo, não há cortes, portanto nesta pequena seqüência ela faz apenas a referência da corrida onde, quase que em círculos devido às limitações do espaço.

Toda a história é recheada de simbologia, a água não é somente o líquido. A chave não é só aquilo que abre. A encruzilhada construída também tem seu significado que está além da forma física e da utilidade. Quando Maria solta a noite que estava presa em um coco, ela é apenas uma sugestão. Como o domo é coberto, a representação foi quase infantil. Os planetas são firmados por fios, lembrando o quarto de criança. Quando Luis Fernando Carvalho concebeu a linguagem de Hoje é dia de Maria, ele queria que tudo tivesse um aspecto de algo que não é mais aquelas que surgiram. Para este pensamento atrelam-se as idéias Simbolistas da virada do século XIX para o XX cujo um dos precursores foi o belga Maurice Maeterlink que já disse “Seria impossível acreditarmos que as coisas são apenas aquilo que parecem ser”(1973).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando Miguel Falabela, ator de Sai de Baixo, foi explicar o que seria aquele programa a resposta foi a seguinte: “Eu acho que talvez seja lembrado como a maior transgressão dentro da linguagem televisiva (...) aquilo era um... um...”. É possível completar essa frase com uma definição simples? Uma palavra que possa dizer exatamente qual a linguagem de Sai de Baixo? E em Hoje é dia de Maria? As duas possuem um formato: sitcom e minissérie. Mas e o Como? esses gêneros foram executados, o jeito de fazer? Todos esses exemplos são frutos da abertura para diálogos entre os veículos de comunicação, as artes e a vida. Todas nasceram da cultura humana, portanto, por mais que certas linguagens artísticas sejam, a princípio, inadequadas para contextos fora de seus universos, as artes e a comunicação retiram o que de melhor exista disponível e adapta a suas condições criando uma linguagem híbrida específica para a obra criada.

Numa sociedade que acredita ter visto tudo, experimentando tudo de bom e ruim, é preciso uma nova injeção de ânimo, um hiperestímulo para prender e surpreender o espectador. Por conta disso, as artes estão sempre se renovando e a TV busca outras formas de comunicação. Por isso trabalhos como Hoje é dia de Maria e Sai de Baixo fazem sucesso. O público pode até acompanhar a novela das 20h por anos, mas ele precisa que outras coisas apareçam como respiradouros para que possam continuar acompanhando o arroz com feijão das novelas.

E agora, a gente vai pra onde? Quando todos acreditam que tudo já foi criado, o que resta agora e aproveitar. As palavras de ordem são: reciclagem, referência, novas roupagens para o que já foi construído. A arte aceitou e aproveitou tudo isso e vem quebrando cada vez mais com o sagrado. As obras analisadas neste trabalho são construídas à base de releituras e de hibridismo. As fronteiras são tênues, misturadas, quase inexistentes. Enquanto que na modernidade a boa luta buscava o verossímil e o coerente, na pós-modernidade a barreira não existe. Se isso é representação, então, vamos experimentar. Ambos os trabalhos analisados seguem essa característica, mesmo respeitando certa realidade. Elas trabalham com a realidade fantástica, onde tudo pode acontecer.

Todos os recursos que foram utilizados não fogem à regra das artes e da televisão que é se aproveitar do que existe ao redor para construir trabalhos ousados. Está presente, também na característica da nossa época. Não posso dizer que há 30 anos esses profissionais fariam as mesmas escolhas na formatação da linguagem para seus trabalhos. Só foi possível devido à capacidade das pós modernidade em aceitar as mudanças. As obras analisadas são frutos dessa geração que parece ainda não saber muito bem para onde está indo, mas que, mais importante de tudo, ela não pára de caminhar, seja com os pés descalços no chão como a menina Maria ou nos mais potentes meios de transporte.

Mas vamos “que o que tem que ser tem muita força.” Esse é só o começo de uma jornada. Inté!”

REFERÊNCIAS

BALOGH, Anna Maria. O Discurso ficcional na TV: sedução e sonho em doses homeopáticas. São Paulo: EDUSP, 2002.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutividade técnica (165 - 179). In: Magia e técnica, arte e política. Trab: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. Tradução de Maria Paula V. Zurawski, J. Guinsburg, Sergio Coelho e Clovis Garcia. São Paulo – Perspectiva, 2001.

BONASIO, Valter. Televisão, manual de produção & direção. Editora Leitura, 2002.

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1985.

BUISSON, François Albert. Vida e obra (31 - 54). In: O Pássaro Azul. Tradução de Carlos Drumond de Andrade. Rio de Janeiro: Editora Opera Mundi, 1973.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.

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DVD

MARIA, Hoje é dia de. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Produção: César Lino. Intérpretes: Carolina Oliveira, Stenio Garcia, Osmar Prado, Fernanda Montenegro e outros. Roteiro: Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho. Música: Mariozinho Rocha. Rio de Janeiro. TV Globo, c 2004-2006. 3 DVD. Produzido pela Som Livre. Baseado na obra de Carlos Alberto Soffredini.

BAIXO, Sai de, episódio Separação de bens. Direção: Daniel Filho. Produção: Núcleo Daniel Filho. Intérpretes: Miguel Falabella, Marisa Orth, Aracy Balabanian, Luís Gustavo, Cláudia Jimenez e Tom Cavalcante. Roteiro: Flavio de Souza e Cláudio Paiva. Música: Ricardo Ottoboni. Rio de Janeiro. TV Globo, c2003. 2 DVD. Produzido pela Som Livre.

OBS.: Este trabalho foi apresentado no GP Televisão e Vídeo, X Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação pela Pós-graduanda do Curso de Comunicação Televisiva das Faculdades Integradas Espírito-santenses – FAESA, Charlaine Rodrigues (charlaninerodrigues@yahoo.com.br), com orientação da Profa. Dra. Alessandra Carvalho. Professor de Jornalismo das Faculdades Integradas Espírito-santenses – FAESA.

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